Produção Literária com Propósito: As Obras de Luís Nhachote

Autor de Phambeni e Do Alto da Colina, obras que resgatam a memória crítica moçambicana com apoio de instituições culturais…

O primeiro livro, Phambeni — que nas línguas do sul significa “Para Frente” — foi lançado no dia 18 de julho de 2023, em Maputo, na sede do Sindicato Nacional dos Jornalistas, e foi apresentado pelo renomado escritor Ungulani Ba Ka Khosa, um dos cinco moçambicanos na lista dos 100 maiores escritores africanos do século passado.

Phambeni reúne um conjunto de cartas publicadas em 41 edições do jornal eletrônico mediaFAX, entre julho de 2003 e maio de 2004. A primeira carta saiu no nº 2827 e a última, no nº 3029. A coluna, bastante ousada para a sua época, denominava-se “Cartas ao Senhor Presidente”.

Do Alto da Colina é o mais recente livro do jornalista e cronista Luís Nhachote, intitulado “Do Alto da Colina, Todas as Crónicas 2003–2005”.
A obra, editada pela Gala-Gala Edições, reúne cerca de uma centena de textos publicados originalmente na coluna homónima do semanário SAVANA, entre 2003 e junho de 2005.

Com um total de 304 páginas, o livro — apresentado pelo escritor Marcelo Panguana — resgata uma fase marcante do jornalismo moçambicano, através da visão crítica, irónica e profundamente engajada de Nhachote.

Entre os temas abordados nas crónicas, destacam-se:

  • o midiático julgamento do Caso BCM;

  • o debate em torno da suposta “morte da literatura”;

  • os meandros do tráfico de drogas;

  • e a influência crescente da religião nas dinâmicas sociais do país.

Phambeni,


Crónicas dos anos de sonho
Por Ungulani Ba Ka Khosa *


Acedi, com agrado, ao convite de Luís Nhachote para apresentar este seu primeiro
rebento em livro. Disse agrado, por já conhecer o Nhachote há mais de trinta anos. À
época eu trabalhava no então Instituto Nacional de Cinema,agregado à economia de
mercado. Falo dos princípios dos anos 90. Nhachote era ao tempo um personagem, um
indivíduo desassossegado no pensamento e na acção.Admirei nele essa permanente
inquietação intelectual, um espírito incandescente, e a premente necessidade em
participar na abertura democrática que se construía.Decorrente disso, convidei-o, mais
o seu amigo Celso Manguana, a assistir, todas as terças feiras, à projecção de filmes a
estrear nas salas pelo Lusomundo, no defunto cinema Xenon. As sessões eram
também um pretexto para um debate sobre as grandes questões da nova
república.Todos queríamos ser parte, como sujeitos activos, da construção da
sociedade resultante da constituição de 1990 onde, entre outros articulados, se
consagrava a separação de poderes, o multipartidarismo, a liberdade de imprensa,e os
direitos, deveres e liberdades fundamentais. Assumimos então o que a modernidade, no
sentido histórico, vinha construindo há mais de um século.
Abriram-se novos horizontes a uma sociedade ainda marcada com os excessos do
centralismo democrático, da centralização excessiva do poder na mais alta figura da
nação, e do pensamento vigiado.
Este Phambeni, pra frente, em tradução livre, emerge dum cenário formalmente solto
das amarras censórias e do espartilho ideológico.
Luís Nhachote ousou, como jornalista afecto a um órgão independente, dirigir-se a um
presidente da República por via da imprensa, Até então certas instâncias dos poderes
vigentes eram de acesso restrito e vigiado; e os nossos actos sempre sujeitos a
desencontradas críticas. Recordo-me que até a apropriação individual da bandeira
nacional configurava delito sujeito a reprimenda. O nosso mestre Craveirinha, a
propósito dos censores que zuniam como moscas, foi pertinaz ao asseverar, num
poema marcante, que "Dos grandes chefes não tenho medo/ Meu receio é dos que lhes
ocultam os insidiosos/ olhares nas eufemísticas vénias./Dos grandes não temas o inato
orgulho./ Os erros nascem das mentiras dos outros./ O silêncio é a ponta do punhal no
punho hostil da conivência.
E tivemos o nosso período de transição à pluralidade democrática. Nesse espaço
temporal fomos confrontados com questões tão anedóticas, para não dizer
tragicômicas.Vem-me à memória a série de encontros bastante concorridos na
associação de escritores, nos quais altos dirigentes do partido único nos colocaram,
entre outras,duas questões que roçavam a bizarrice: vocês querem uma sociedade
pluripartidária, ou querem estar sob o manto da Frelimo? Para nós, citadinos, as
perguntas não faziam sentido, mas imaginem tais questões no espaço
nacional,marcadamente rural, onde a unanimidade tipificava a democracia popular.

Avancemos. Nhachote deu às suas cartas ao Presidente no último ano do consulado de
2 mandatos,como consignava a carta constitucional de 1990, do presidente Chissano.
Estamos em 2004. Os grandes problemas com que o país se confrontava, mantinham-
se à tona. Falo do consumo de drogas, área pendular nas cartas, a alta inflação, a
excessiva burocracia, a inoperância das forças policiais, a crescente corrupção, os
grandes obstáculos à operacionalização do recém criado Gabinete do Combate à
Corrupção, a intimidação de jornalistas e outras figuras, a crescente pobreza, o
enriquecimento ilícito, entre outros males. É neste quadro que Nhachote, empregando a
forma epistolar como estratégia de comunicação, se dirigiu ao então Presidente da
República. O género epistolar presta-se à confidencialidade e, acima de tudo, a uma
certa cordialidade. E, diga-se, para surpresa de muitos, Nhachote foi cordato, judicioso,
prudente. Habituados que estávamos à grande extroversão, à incandescência na voz, à
escrita trepidante e, por vezes, vulcânica, estas cartas afiguravam-se, para muitos,
como um baixar de braços. Engano de muitos.
Lendo as cartas com a distância que o livro nos possibilita, fácil se torna entender o que
está para além das cordiais palavras a condizerem com a serenidade e os modos
diplomáticos do então presidente da República. Tendo como tema pendular a venda e o
consumo de drogas na chamada Colômbia, em pleno bairro militar onde os antigos
combatentes, os heróis da gesta nacionalista, os homens da vanguarda habitavam,
Nhanchote foi, a seu modo,levantando grandes questões que abalaram o consulado do
presidente Chissano. Passaram pela sua pena os criminosos desfalques ao Banco
popular de desenvolvimento, o badalado caso do BCM, onde foram desviados mais de
144mil milhões de meticais, da antiga moeda, o risível orçamento para a construção da
casa para o ex-presidente na Catembe, as centenas de mortos na cadeia de
Montepuez, o acidente ferroviário de Tenga, o desvio pela polícia da droga apreendida
em Inhambane, o caso Anibalzinho, entre outros.
O Presidente, a atender pelo que assinalou no prefácio, encaixou, como um bom
boxeur, alguns ganchos,mas sentiu, no turbilhão da cabeça, os vários uppercut que o
Nhachote foi desferindo. Alegra-me saber que passados vinte anos, o Presidente não
só encaixou as investidas,como as assumiu ao dizer que "As cartas de Luís Nhachote
cumpriam o espírito de tolerância. Daí que, como Presidente da República e
garante da Constituição, disse aos meus assessores que o cidadão Nhachote
estava em pleno exercício dos seus direitos constitucionais. Tanto é que as
cartas que me eram dirigidas, semanalmente, acabaram por me acompanhar até
perto do final da minha presidência, em 2004."
É reconfortante ouvir isto de quem esteve em frente dos destinos deste país. Mais
reconfortante ainda seria saber que tal espírito de tolerância se alastra até aos dias de
hoje.
Infelizmente tal não tem acontecido, muito por manifesta e inepta ignorância das
centenas de milhar de camaradas chefes que, como diz o Poeta, ocultam os insidiosos
olhares nas eufemísticas vénias. Sejamos claros: essa gente não lê, e não escuta outra
voz senão a ensurdecedora voz da ganância, do lucro, da exploração, do desafecto. Um

país que não tolera o outro, não pode avançar. É triste, por exemplo, ouvir por aí que
um jovem escritor recebeu chamadas anónimas por ter inserido nas suas crónicas as
reais e anafadas ancas do camarada chefe. E ninguém deles leu o livro. A eles, que
tanto frequentam as igrejas aos domingos,aconselho-os a reterem-se nas palavras do
Papa Francisco que, num recente encontro com artistas na capela sistina,em Roma,
disse:
"O artista é um pouco profeta, um visionário, um homem que vê e sonha, que pelo
acto criativo, revela coisas novas ao mundo. A arte é um lugar especial, um feito
que nos liberta da vileza, do banal, do egoísmo, da fúria do consumismo,porque
Arte, ímpeto do espírito, é vida para além do resultado, da substância, do
sucesso, da vaidade. O artista deve confrontar o poder e acudir os mais fracos, os
mais pobres, não se fazendo hipérbole de si próprio, usando o real para
transformar o real … A arte, como o amor, salva-nos da escura noite da guerra, do
ódio, da intolerância.” Papa Francisco.
Nhachote, tal como ontem, as palavras devem servir para reflectir, para questionar. O
exercício de cidadania deve prosseguir, porque senão os papões do consumismo
retrógrado e estulto irão campear.
Muito obrigado
Maputo, 18 de Julho de 2023
*Texto de apresentacao da obra pelo escritor Ungulani Ba Ka Khosa

Do alto da colina


O homem que escreve é um homem livre –
Baptista Bastos
Por Marcelo Panguana *


Qualquer que seja o livro, o título desempenha um papel importante, porque ele
complementa o texto, é uma espécie de janela aberta através da qual se torna possível
imaginar os mil cenários possíveis. Como alguém o disse, o título faculta um meio de
referir o texto, de o identificar, mas não se esgota nessa função, quanto às relações que
estabelece com o texto. Assim acontece com o livro Do Alto Da Colina, título que nos
sugere um autor que sentado num lugar privilegiado, neste caso em cima da colina,
tudo observa, tudo fixa. Estou convencido que aquele que olha de cima para baixo tem
o privilégio de ver tudo, de observar todas as coisas, de se aperceber de todas as
verdades, ou se quisermos, de algumas delas, principalmente quando o observador
veste a pele de jornalista investigativo e se assume também como escritor, como é o
caso de Luís Nhachote.
Conheci o Nhachote antes de conhecer a sua escrita. Nesse tempo em que nesse
grande palco que é Moçambique, tudo, ou quase tudo, estava por definir. Nhachote,
debutante ainda nessa arte de escrever, procurava nas esquinas onde o verbo e a
escrita constituíam a palavra arma, a oportunidade de divulgar os seus textos, isto é, as
suas ideias, o seu pensamento, o seu estilo literário. Como ele, nesse tempo, outros
debutantes da escrita se insinuavam: falo de um Celso Manguana , responsável do livro
Pátria Que o Pariu, um livro enorme que, infelizmente, nessa época, não mereceu a
devida atenção dos críticos; falo também do Carlos Mauricio a.k.a Rui Ligeiro , poeta
de mão-cheia, do Sangari Okapi , um poeta que num outro espaço, me referi como
sendo alguém que constrói a sua poesia com a mesma delicadeza de um ourives a
concertar um relógio suíço; e também, como não deixaria de ser, de Amin Nordine, que
se apartou cedo do mundo dos vivos quando a literatura moçambicana esperava muito
da sua criatividade. Todos estes se cruzaram com Luís Nhachote nos corredores da
Associação dos Escritores Moçambicanos, insolentes no seus versos, irreverentes nas
suas falas. Tudo era uma aventura, o jornalismo, a sedução da crónica, a busca de uma
poesia original, tudo constituía uma incomensurável procura, mas, na essência, aquilo
que o Nhachote almejava profundamente, era o de construir uma nova narrativa nesses
tempos em que se buscava um novo discurso, uma nova pátria, para uma nova
literatura.
Hoje, ao ler este livro, fiquei com a plena certeza que se existem obras literárias que se
apropriaram de momentos significativos da nossa história para os manterem vivos, Do
Alto Da Colina é uma dessas obras. Se quisermos fazer a leitura do País nesse período
em que este livro foi escrito, podemos nos socorrer às crónicas que aqui constam, na
sua rica multiplicidade, na forma como Nhachote traça o perfil das coisas, ou se
quisermos, a identidade da sua própria sociedade e deste País chamado Moçambique.
Para alcançar este intento, Nhachote, utilizou ferramentas como, por exemplo, a
linguagem simples e descontraída, muitas vezes recorrendo ao humor, a ironia, a
gozação.

O livro Do Alto Da Colina convoca e nos traz narrativas interventivas e insubmissas, que
Luís Nhachote vai rebuscar nos lugares mais diversos. São crónicas onde facilmente se
constata que Nhachote recusa-se a ficar sentado em cima do muro, ou se está no muro,
está de pé, a escrever coisas como estas”: “Amai-vos uns aos outros como eu vos
amei. Combatam com todas as forças que tendes a hipocrisia estampada na janela da
nação. É chegada a hora de abrirdes os olhos, porque em breve eles vos caçarão
dizendo que o melhor dia é amanhã e não hoje”. Fim da citação. As crónicas de
Nhachote trazem consigo a voz de um despertador de consciências, de alguém que
pretende chamar a nossa atenção para tudo que nos rodeia. É essa, aliás, a função da
escrita nos dias que correm, não é somente denunciar, mas também o de despertar a
sociedade, anunciar ao homem o seu lugar e os seus direitos, ajudá-lo a tentar alcançar
a felicidade. Dizia, aliás, o escritor peruano Vargas Llosa, recentemente falecido, que a
literatura não aluga frases nas feiras, mas ajuda-nos a defendermo-nos da infelicidade.
Nesse papel de despertador de consciências encontramos neste livro muitos exemplos.
Repare-se, por exemplo, neste excerto: “Eles sempre souberam que a nossa riqueza
são os filhos que as nossas mulheres férteis geraram em noites de luar e chuvas
torrenciais. Agora sereis dizimados por gostarem de sexo, as vossas terras ficarão
vazias nesse dia que se aproxima, se não levardes a sério a prevenção. Eles voltarão
com a vacina que guardam nos laboratórios e aplicarão aos doentes mais gordos, e os
que restarem da vossa árvore genealógica, serão humilhados como cães famintos.”
Fecho a citação. Mas Nhachote é também um vivente que sofre os agradáveis
percalços do amor e que o levam a caminhar em direcção ao oásis. Ele poetiza assim:
“Olhei para o mar, azul, lindo e disse-lhe, Marília, és muito linda. Ela sorriu. Um vento
leve soprou. O seu perfume subiu-me às narinas, e suspirei de alívio. Antes de nos
sentarmos nas areias finas, descalçamos e iniciamos uma marcha ao sabor do vento
Sul”.
Duas décadas depois de terem sido escritas, estão aqui as crónicas. Cada um de nós
vai julgá-las como bem o entender, o que acontecendo vai significar que Do Alto Da
Colina foi lido. Seja qual for o nosso veredicto, Luis Nhachote não vai se preocupar,
porque, como o disse, “Nunca me assumi plenamente, como escritor, por ser uma
disciplina de reclusão comigo mesmo, quando eu amo a liberdade de observar, para de
vez em quando, exorcizar, tentando replicar o social”. E nessa tentativa de réplica fala
de muitas coisas, e isso compreende-se porque Nhachote cruzou-se ao longo dos
tempos com muita gente, e não é por acaso que no livro Do Alto Da Colina encontramos
generais, bancários, prostitutas, empresários de sucesso, detentores de xiconhocas,
cadetes, e uma reivindicação do seu espaço, o direito à visibilidade, cada um desfilando
neste livro como lhe apetece. É com estas personagens que Nhachote inova o seu
discurso, utilizando as ferramentas que lhe possibilitam o desenvolvimento da distância
entre o narrador e o feitor, e este, o leitor, acaba se identificando plenamente com as
fórmulas “nhachotianas”. O que pretendo dizer é que ele, Nhachote, escreve da mesma
maneira como fala. E a sua fala, muitas vezes vestido de algum sarcasmo e ironia,
como tive a oportunidade de referir, constitui um dos seus principais méritos.
Podemos dizer que o livro que temos entre as mãos, antes de ser o relato de histórias
diversas, é, sobretudo, a exploração da condição humana. E como um dia disse o
escritor Baptista Bastos, e cito, “O homem não deve se resignar, se submeter à

negligência, porque mesmo no opróbrio e na clausura, um homem pode ser livre. O
homem que escreve é um homem livre”. E ditas todas estas palavras, apenas
acrescento: com este livro, Nhachote tornou-se mais livre.
*Texto lido pelo laureado escritor na apresentação do livro de Luis Nhachote
17 de Abrlil de 2025